Pedro, “o menino que sabia de cor”, faz 90 anos

Dom Pedro Fedalto-AM (8)-10115

Arcebispo emérito de Curitiba, dono de memória prodigiosa, consagra-se como uma das mais longevas e vigorosas personalidades do Paraná

Dom Pedro Fedalto, o arcebispo emérito de Curitiba, está em retiro espiritual. Pede que não o perturbem: a semana exige silêncio. Tem motivos. Hoje (11), o homem que esteve à frente da arquidiocese paranaense por mais de três décadas crava 90 anos. No final deste mês, 28, outro festejo – as Bodas de Ouro de ordenação episcopal, celebrada em 1966.

Dar contas das duas efemérides será como cruzar um Mar Vermelho. Pedro tem uma legião de seguidores – no sentido menos digital do termo. Sua audiência é de reduzir youtubers a pó. Neste mês de agosto em particular, terá de atender telefonemas, distribuir bênçãos e não economizar nos cumprimentos. Por fim, enfrentar um concorrido almoço em Santa Felicidade. São atividades demais para quem pegou gosto pela vida reclusa, no Seminário São José de Órleans, sua casa depois da aposentadoria compulsória, em 2004.

Sem falar nos perigos que a multidão impõe a um nonagenário. “Meus ossos dos pés são como um isopor. Não posso cair”, avisa Fedalto, em entrevista antes de se recolher em orações, no Mosteiro Carmelita do Guabirotuba. Sugere que não o empurrem. Sim, o arcebispo está de bom humor, inclusive para falar dos achaques da idade. Passa bem, mas não esconde que adoraria morrer num sábado, a exemplo de seu pai e sua mãe e como torcem para lhes acontecer os devotos de Nossa Senhora do Carmo em geral, seu caso. “Os escapulários que partem nesse dia da semana vão diretinho para o céu”, avisa, não sem antes discorrer – com o saber enciclopédico que o tornou célebre – sobre a origem dessa tradição.

Pedro pode até falar de morte, mas está em forma. É objeto de estudo para a ciência. Na visita do papa Francisco ao Brasil, em 2013, houve um encontro em Aparecida com os “príncipes da Igreja”, como se dizia, incluindo os já aposentados e em idade avançada, como ele. Numa brecha para tirar fotos e tietar o Sumo Pontífice, a maior parte dos eméritos não conseguiu vencer as resistências do protocolo e chegar ao altar, limitados por problemas físicos de toda ordem – um martírio. Exceto para um. “Tirei uma foto com papa Francisco”, gaba-se o colecionador de grandes e pequenos feitos, a maior parte deles trancafiados a chave. Vai levá-los com ele, quiçá num sábado.

Quem tem um aparte com o Fedalto costuma destacar o sotaque clerical inconfundível – treinado ao longo de pelo menos 23 mil missas celebradas desde sua ordenação, em 1953. Outros se atêm aos olhos de azul cristalino, ou à disciplina monástica, mas, sobretudo, o que impressiona é a memória. “Recebi esse dom”, reconhece, ao falar da habilidade que é capaz de transformá-lo, em segundos, no centro das atenções, como se súbito os presentes se vissem diante de uma força da natureza. Destila datas, endereços, nomes e sobrenomes completos, passagens históricas de qualquer naipe – das revoluções ao ano em que uma obscura paróquia de periferia foi criada. Não decepciona esmo quando pede uma pausa para o download, dizendo-se um pouco esquecido. É como se em meio ao suspense transportasse a plateia para um quiz show vaticano. Aos que o aplaudem pela performance, brinda com uma história “quase um trauma” que o acompanha desde a meninice.

Aos 13 anos, em 1940, ao deixar a Colônia Rebouças, em Campo Largo, e ingressar no seminário diocesano, viu-se em tranças com a língua portuguesa. Em casa falava um dialeto vêneto. Além das travas com o idioma, outra desvantagem: não vinha de um ambiente erudito. Suas especialidades, então, se resumiam às lides na roça. Filho mais velho de dona Corona e seu Giácomo, comparecia na enxada. O choque cultural veio sem misericórdia. Ao oferecer estudos de altíssima qualidade, os institutos católicos da primeira metade do século passado pecavam pelo excesso de competição. Procurava-se entre os candidatos a clérigos os mais capazes, a serem premiados, não raro, com temporadas de estudos em Roma. O guri de Rebouças ressentiu daquele clima de campeonato e avisou, nos primeiros meses, que queria voltar para Rebouças. O pedido foi negado, via-se ali uma vocação, mas a pressão não diminuiu. Para não fazer feio, agarrou-se ao dicionário, o que não impediu, certa feita, a trocar a palavra “doze” por “dose”. Perdeu pontos, mas em revanche nasceu ali uma espécie de atleta das boas notas.

Se os cálculos estiverem certos, e em se tratando de quem se trata, estão, apenas nos tempos de seminarista menor o menino Pedro Antônio Marchetti Fedalto ganhou 38 condecorações. Seu desempenho acadêmico era olímpico. Numa dessas premiações, ouviu pela primeira vez a profecia – “Pedro, você ainda vai ser bispo”. Aconteceu mais cedo do que podia imaginar. À época, foi um dos mais jovens epíscopos do Brasil. Tinha 44 anos quando chegou ao trono. E não bastasse a mocidade, tinha viajado por parte do mundo, a começar por Nova York. Hoje é quase banal, mas não na década de 1960, era uma distinção. O então padre Pedro – um sujeito aos modos da colônia – conheceu os Estados Unidos e uns tantos países da Europa. Na Itália, participou como ouvinte de audiências do Vaticano II. Pouco tempo depois, foi chamado para uma sabatina da hierarquia da Igreja e, via de regra, ganhou a aprovação: seria bispo, cumprindo as apostas dos colegas de claustro.

Dom Pedro Fedalto não foi biografado – nem deve, pois está vivo. Num futuro, há de surpreender quem por acaso, pescar as pistas que deixa aqui e ali. A começar pela resistência a rótulos. O arcebispo emérito não cabe numa única frase. Há os que teimam a reduzi-lo a um líder conservador, que rezou terços e fez procissões em 1964, para conter os perigos dos comunistas; e que promoveu a vinda do militante norte-americano Patrick Peyton a Curitiba, conhecido então como “padre Hollywood” – por convencer astros do cinema a viverem, de graça, personagens da História Sagrada em longas-metragens.

Mas ele desafia esses diagnósticos sempre que alguém lembra – essa sim, uma cena de filme – de Pedro de batina, fazendo vigília nos quartéis para tirar de lá jovens encrencados com a ditadura e padres mais empolgados com o marxismo. Impossível arrancar-lhe confissões de santo Agostinho, mas é sabido de sua intrujice a favor do ex-preso político e hoje advogado Vitório Soratiuk, da jornalista Teresa Urban e outras meninas “de famílias católicas”, como alegava o bispo aos generais. Indiretamente, lembrava à turma da farda que Paulo VI podia botar a boca no trombone. Muitas das gurias da lista de Pedro cumpriram pena em conventos, como o das irmãs vicentinas e das irmãs franciscanas de São José. Não foi milagre – foi ele.

A aparente contradição não acaba aí. Paralelo à pecha de administrador aguerrido, voltado para a salvaguarda e lisura dos bens da arquidiocese – que ele lista com a perícia de um contador –, impõe-se a figura do líder fiel a si mesmo. Com fama de carola, trouxe o polêmico e incendiário dom Bernardino Sândalo para pregar retiros para os padres de sua arquidiocese. Dado a chamar às falas os padres afeito a cartilhas pouco ortodoxas, revelou-se fã confesso de dom Hélder Câmara, de quem foi amigo do peito. “Convidei dom Pedro Casaldáliga para vir até aqui, mas ele nunca pôde”, revela, sobre o prelado de Conceição de Araguaia, o mais à esquerda daqueles idos. Resta perguntar quem é Pedro afinal. A resposta – para quem o conhece de perto – é só uma: um pastor.

De todas as suas histórias, as melhores são sempre a do homem que segue atrás do rebanho, nos conformes do lema de seu episcopado: “veritatem in caritate” (verdade na caridade). Seja ele um sacerdote fundamentalista que se negava a seguir o Vaticano II – o que lhe deu solenes dores de cabeça, seja eu ou você, num encontro com ele em alguma sacristia ou missa de Crisma. Suas demoradas visitas pastorais contrastavam com as visitinhas de médicos praticadas por muitos bispos. Ainda hoje é assim. Nunca deixa de ir, por exemplo, à Colônia Rebouças, onde tudo começou. Ou ao encontro de quem insiste em chamá-lo para atividades quaisquer, como que a ignorar que Pedro Antônio chegou aos 90. Parece mentira. Não à toa lhe doem tanto os ossos dos pés – pela sola dos sapatos de Pedro passam as virtudes dos que anunciam a paz. Está escrito na Bíblia. Assim se fez.

Texto de José Carlos Fernandes – jornalista (publicado originalmente na edição de hoje da Gazeta do Povo)

Confira também o texto sobre Dom Pedro Fedalto, publicado na Série Perfil da Gazeta do Povo em 2010: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/especiais/perfil/o-pedro-nosso-de-cada-dia-0mq9kedwtrr7buqc7r11dehxq

Pedro, “o menino que sabia de cor”, faz 90 anos

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